sábado, 27 de março de 2010

Carl Barks o genial homem dos patos.

Um final de semana com Carl Barks

Se você perguntar a diversos fãs de histórias em quadrinhos quem eles consideram o maior gênio da arte sequencial de todos os tempos, você terá respostas acaloradas e divergentes: Will Eisner, Charles Schulz, Frank Miller, muitos outros, até mesmo o marginal Robert Crumb. E poucos provavelmente lembrarão de Carl Barks, mas mencione seu nome e ouça um suspiro seguido de um comentário como "ah! Esse é hors-concours!".

Carl Barks (1901-2000) é possivelmente o único quadrinista a ser considerado perfeito. Exagero? Roteirista, desenhista e arte-finalista de várias histórias da Família Pato dos Estúdios Disney, e pintor extraordinário, Barks foi responsável por fazer mais que definir a personalidade de seus personagens e alçá-los ao estrelato. Pode se dizer que ele humanizou o Pato. A biografia de Carl é rica e repleta de trabalhos gloriosos nos quadrinhos e na animação. Esse texto, todavia, detém-se "apenas" ao seu talento nas páginas impressas, pois essas davam espaço à totalidade do seu poder criativo. Poder vindo de um homem que tinha concluído seus estudos até o equivalente americano ao primeiro grau e que viveu a maior parte de sua vida recluso num sítio, do qual saía apenas duas vezes por mês para levar seus trabalhos ao editor.

A maior parte da reclusão de Carl era passada em sua biblioteca, já que os livros eram uma paixão que o acompanhava desde a infância. E graças a eles o desenhista pode praticamente recriar civilizações antigas que eram pano de fundo para as viagens do Tio Patinhas. O artista costumava dizer que viajara o mundo inteiro graças a seus livros, e tinha boas recordações de todos os lugares que "visitara". Seu detalhismo ao retratar templos ou monumentos criava paisagens tão verossímeis e belas que pareciam ser a transposição de uma foto acrescida da emoção da arte. Em outras ocasiões, essa profundidade decorria exclusivamente de sua imaginação, pois lugares nunca descobertos pelo homem moderno como as minas do rei Salomão ou a sala do tesouro do rei Minos I da Grécia - ou até paisagens mitológicas como Asgard ou Cólquida e paragens de sua criação, como a fantástica Quadradópolis - sugeriam uma notável impressão de realidade e familiaridade. Entretanto, essa captação das imagens que pareciam vívidas apenas em nosso inconsciente não era o único destaque no traço do artista. Os patos ganharam em suas mãos, um visual mais simpático e carismático, ficando mais gordinhos e dotando-se de expressões mais maleáveis e humanas, com o exagero sendo usado de maneira precisa.

Trabalhar as emoções e características dos personagens era algo também muito caro a Barks, o que era facilitado pelo fato de ele haver criado a maioria dos patos importantes que circulam por Patópolis (Duckburg, no original) e suas redondezas. De sua criatividade emanaram as formas e as características do sortudo Gastão (Gladstone Gander, criado em 1948), da namorada Margarida (Daisy Duck, 1940), do inventor maluco e bem-intencionado Professor Pardal (Gyro Gearloose) e de seu simpático assistente Lampadinha (Little Helper, ambos em 1952), dos empertigados Escoteiros-Mirins (Junior Woodchucks, 1950), dos sardônicos Irmãos Metralha (Beagle Boys, 1951), da sinistra e charmosa bruxa italiana Maga Patalójika (Magica de Spell, 1961), do ardiloso e obstinado bilionário sul-africano Pão-Duro Mac Mônei (Flintheart Glomgold) e de vários coadjuvantes. Mas a maior de suas criações, em termos artístico e comercial, foi o Tio Patinhas (Uncle Scrooge McDuck, 1947).
Inicialmente um coadjuvante nas histórias de Donald, o velho sovina foi ganhando cada vez mais espaço e projeção até ter sua revista própria em 1952. Esse crescimento de popularidade foi proporcionalmente acompanhado de um ganho de profundidade na personalidade do personagem, que teve sua história definida, da primeira moedinha (que guardaria como talismã para o resto da vida, sendo alvo de cobiça da feiticeira Patalójika) aos incontáveis bilhões que o levariam a possuir uma caixa-forte para guardar seu dinheiro. Desprezo pelo sistema bancário? Nada disso, apenas um meio de garantir a perpetuação de seu hobby preferido: mergulhar nas moedas e chafurdar entre elas como uma toupeira (hábito mostrado pela primeira vez na história Only a Poor Old Man, no Brasil intitulada "Nadando em Dinheiro", que também traz a primeira aparição dos irmãos Metralha). Um detalhe curioso: a Caixa-Forte abrigava, segundo seu proprietário, "três acres cúbicos" de dinheiro - medida que não existe. Porém, o matemático texano Flash Kellam se deu ao trabalho de imaginar e calcular como essa unidade seria se realmente existisse: a Caixa teria as dimensões de três campos de futebol "em pé", o que mudaria seu desenho original.

Contudo, brincar em dinheiro não era o único traço saliente na personalidade do pato que saíra da Escócia para a América em busca de fortuna. Patinhas era inacreditavelmente avarento e agressivamente ganancioso, mas nunca cedera a princípios baixos para obter suas conquistas (embora a tentação batesse à sua porta repetidas vezes, levando-o a vacilar mas nunca ceder). Também se dispunha a arriscar a vida para salvar um cão que o salvara anteriormente, mesmo que isso pudesse vir a custar toda a sua fortuna (conforme mostrado na história "De Volta ao Alasca"). A afeição por sua família era grande e invejável, o que não o impedia de arrastá-la para terríveis enrascadas sob o miserável pagamento de trinta centavos a hora. Patinhas não era a caricatura que se costuma definir, embora na mão de roteiristas menos talentosos ele chegasse perto disso. Mas Carl sabia lidar com suas crias como ninguém.

Aliás, o Tio Patinhas servia de pretexto para muitas histórias que criticavam o supercapitalismo - isso em plenos anos 50! O melhor exemplo está na história "O Grande Operador": a trama começa com os três sobrinhos de Donald observando com inveja e humildade a grandiosidade das operações comandadas por seu tio-avô. Esse, por sua vez, se vê despojado de suas riquezas ao ficar isolado em um vulcão extinto habitado por mini-patos que desconheciam o papel moeda. Entre eles, Patinhas é apenas um homem de grande estatura - e só. Suas posses nada significam, e na hora em que o perigo surge, não é seu dinheiro que o salva, e sim sua mudança de conduta. Nas suas palavras, somente com uma atitude que veio a lhe causar prejuízo pode provar-se digno do adjetivo "grande", e não é sem amargura e vergonha que ele admite isso. O consumismo também ganhava críticas mordazes em várias histórias, principalmente nos belos especiais de Natal que Barks produziu.

A futilidade de Margarida também era utilizada por Barks para ironizar os radicalismos machismo/feminismo, além de render clássicas tiradas sobre relacionamentos. A mais antológica delas está na história "O Fazedor de Chuva" (The Rainmaker, link no fim da página). Quando Donald liga para Margarida convidando-a para um passeio e ela recusa por já estar comprometida em sair com o primo do próprio namorado (honesta a pata, não?), ele é abordado pelo "Monstro de Olhos Verdes", que lhe atira um vaso de "essência de fúria" para que ele tome uma atitude drástica. A cena toda é uma citação ao acesso de fúria de Otelo na peça epônima de Shakespeare, quando o mouro veneziano se diz atormentado por um "monstro de olhos verdes chamado Ciúme". Espetacular!

O melhor no texto de Barks era seu humor imprevisível. Apesar das intrincadas sagas envolvendo tramas históricas e do cinismo irônico que era empregado contra o materialismo rutilante dos americanos, nada era tão soberbo quanto sua finesse e mordacidade para criar frases de efeito ou finais fascinantes. Dentre as frases, é impossível listar todas ou mesmo algumas, visto o volume de texto que seria necessário para contextualizá-las. Mas vale citar uma, quando Donald, descrente quanto ao funcionamento de uma forquilha mágica que já se provara eficiente, resmunga: "se essa porcaria achou água, só pode ser o esgoto do inferno". Já os finais, esses eram a especialidade de Carl. Podiam ser ridículos, mas de uma lógica incontestável; óbvios, mas de uma forma na qual jamais pensaríamos; ou mesmo (e muito comumente) inesperados, os finais imaginados por Barks sempre subvertiam as expectativas do leitor e tornavam cada uma de suas histórias uma experiência única como um livro, mesmo que às vezes de poucas páginas.

Por essas e por muitas outras razões (cada fã tem a sua específica, essas são apenas as mais habitualmente citadas), Carl Barks habita a mente e o coração de muitos leitores, que tiveram acesso a um mundo de cultura, surpresa e diversão a partir de suas páginas. E seus muitos discípulos - os americanos Don Rosa, Tony Strobl e William Van Horn, o holandês Daan Jipes, o chileno Victor Arriagada Rios, os italianos Romano Scarpa, Giorgio Cavazzano e Marco Rota, para ficar nos principais - trataram de dar continuidade a sua obra com dignidade (Jipes chegou a ilustrar vários roteiros do mestre produzidos nos anos 70). Cada um deles merece também análises e muitas homenagens, para não falar nos brasileiros Euclides Miyaura e Irineu Soares (esses, certamente merecedores de muitos capítulos à parte). Mas o maior nome, o princípio e até o fim de tudo (já que todos - leitores e artistas - sempre recorrem a ele quando querem o supra-sumo dos patos) será sempre o velho Carl Barks. Descanse em paz, "tio" Carl! Seus muitos sobrinhos espalhados pelo mundo agradecem e zelam por sua obra inesquecível.












Fonte: Youtube. (texto de Leonardo Vinhas)

2 comentários:

Dan disse...

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